Benefícios, Desafios e Impacto na Vida Social e Profissional
Artigo de Fernando Macário, Nefrologista, Membro do Conselho Científico da ANADIAL – Associação Nacional de Centros de Diálise
Várias décadas de evolução na hemodiálise proporcionaram uma mudança radical no acesso ao tratamento e várias evoluções técnicas que permitiram um aumento significativo da qualidade dos tratamentos e da qualidade de vida dos doentes renais crónicos com necessidade de tratamento substitutivo renal. Longe vão os tempos em que apenas um grupo selecionado de doentes tinha acesso à diálise e, mesmo esses, tinham uma qualidade de vida bastante sofrível. Portugal destaca-se no tratamento dos doentes renais crónicos, com acesso universal à diálise, elevada qualidade clínica e boas taxas de transplantação renal. Mas será que o copo está meio cheio ou meio vazio? Apesar de toda esta evolução, para a maioria dos doentes, ainda significa duas agulhas ou um cateter, quatro horas de tratamento três vezes por semana, muita medicação, longa espera por um transplante e regimes de tratamento pouco flexíveis. Terá que ser assim?
“Leonor Magalhães (nome fictício) tem 64 anos e iniciou hemodiálise há cerca de um ano, após um diagnóstico inesperado de doença renal crónica avançada. Levava a neta, a sua Joaninha, todas as manhãs à escola e ficava com ela à tarde, quando esta regressava da escola. Deixou de o poder fazer três dias da semana, quando iniciou hemodiálise, por apenas ter disponível o turno da tarde. Após uma conversa com a assistente social e a sua nefrologista, foi-lhe proposta hemodiálise noturna longa no centro. Adaptou-se bem, com bom padrão de sono, sente mais energia, a necessidade de medicação para o fósforo diminuiu e, mais importante que tudo isso, vai levar e buscar a neta todos os dias à escola e fica com ela até a filha Carmen chegar ao fim da tarde, da fábrica onde trabalha.”
A hemodiálise noturna pode melhorar a qualidade de vida dos doentes, proporcionando mais liberdade e flexibilidade durante o dia. Como o tratamento é realizado à noite, os doentes têm o dia livre para se dedicarem a atividades profissionais, sociais, familiares e de lazer, o que contribui para uma melhor integração social e maior sensação de normalidade. A qualidade do sono também tende a melhorar com a diálise noturna, uma vez que a remoção gradual de toxinas durante a noite resulta em menos fadiga e mais energia durante o dia.1
“Francisco Telles (nome fictício) tem 45 anos, é advogado e está em diálise pela segunda vez após dois transplantes renais rejeitados. A diálise peritoneal não era uma opção. Come regularmente em restaurantes e o controlo do fósforo e da tensão arterial foi sempre um problema. Desde que iniciou hemodiálise noturna longa há seis meses, apresenta melhor controlo. Ainda mais relevante para ele é a forma como consegue gerir a sua agenda profissional, já não necessitando de faltar a reuniões ou adiar audiências no tribunal, desde que passou a não ter os dias ocupados com sessões de hemodiálise. Entretanto, retomou uma atividade de que muito gostava, a natação, pois sente-se muito mais ativo.”
Uma das maiores vantagens da hemodiálise noturna é a possibilidade de retorno à vida profissional. A realização do tratamento durante a noite permite que os doentes mantenham uma rotina de trabalho normal durante o dia, reduzindo a necessidade de ausências frequentes para sessões de diálise diurnas.
Outro potencial benefício da hemodiálise noturna é a remoção mais eficiente de toxinas e fluidos do corpo. Sessões prolongadas, geralmente de 6 a 8 horas, podem permitir uma depuração mais fisiológica, mais fácil controlo da remoção de líquidos, menos episódios de hipotensão, um melhor controlo da pressão arterial e uma potencial redução nas complicações cardiovasculares.1
A diálise noturna pode levar a uma melhoria no desempenho físico dos doentes, o que é crucial para manter uma vida ativa e saudável.2 A personalização da prescrição dialítica, ajustada de acordo com as necessidades específicas de cada doente, também é um fator importante para otimizar os resultados da diálise noturna. Nalguns casos, uma frequência aumentada das sessões noturnas — realizadas de 4 a 6 vezes por semana — contribui para uma remoção contínua e estável de resíduos metabólicos, melhorando a estabilidade hemodinâmica e reduzindo episódios de hipotensão e cãibras.1, 3
A melhoria na capacidade física e na função cognitiva, observada na hemodiálise longa noturna, também contribui para um melhor desempenho no ambiente de trabalho. Doentes relatam uma maior capacidade de concentração e produtividade, o que é essencial para manter a eficiência no trabalho.
Desafios no Estabelecimento de um Programa de Hemodiálise Noturna
“Manuela Soares (nome fictício), a enfermeira-chefe da clínica, relata que naquela segunda-feira em setembro de 2010 estava tudo pronto para arrancar o programa de hemodiálise noturna: a direção médica nacional e o diretor-geral da companhia tinham autorizado o início do programa, apesar dos custos aumentados quando comparados com a programação habitual. Após várias sessões educacionais com doentes potencialmente elegíveis, dez voluntariaram-separa fazer tratamento noturno. A sala de diálise foi preparada para proporcionar um ambiente tranquilo e confortável com iluminação reduzida após a conexão dos doentes, colchões confortáveis sobre os cadeirões e uma mesa de apoio com um candeeiro individual que o doente podia utilizar. As prescrições de diálise foram ajustadas e a estratégia de monitorização clínica adaptada para proporcionar mais conforto mantendo a segurança. Mas a surpresa veio de outro lado! Eram já 19 horas e a autoridade local de saúde ainda não tinha emitido as autorizações para transportar os doentes nos novos horários. Foi preciso tomar uma decisão e um plano B foi desenhado em que a clínica assumia oscustos e responsabilidade com transportes em táxi, se essa autorização não fosse emitida. Passava já das 21 horas quando finalmente a autorização chegou e às 23 horas os doentes iniciaram tratamento pela primeira vez no novo turno da noite. Seis meses depois, objetivou-se nesses dez doentes uma diminuição do consumo de captadores de fósforo e de hipertensores e uma menor frequência de episódios de hipotensão e cãibras. A satisfação dos doentes e dos profissionais era evidente.”
Apesar dos muitos benefícios, a hemodiálise noturna também apresenta desafios. A necessidade de espaço adequado e confortável para o tratamento, a supervisão constante e o treino adequado para lidar com possíveis complicações são fatores que devem ser considerados. Os custos adicionais têm de ser equacionados. Estratégias de digitalização e de monitorização contínua remota podem ajudar a diminuir custos e proporcionar maior conforto ao doente, diminuindo as interações físicas durante as sessões de diálise.
Em resumo, a hemodiálise noturna oferece um potencial significativo para melhorar a reabilitação social e a possibilidade de retorno à vida profissional para doentes com DRC. A combinação de maior flexibilidade de horário, melhor qualidade de vida e desempenho físico e mental pode ajudar os doentes a retomarem suas atividades diárias e profissionais de maneira mais eficaz e satisfatória.
Referências:
- Hull, K.L., Bramham, K., Brookes, C.L. et al. The NightLife study — the clinical and cost-effectiveness of thrice-weekly, extended, in-centre nocturnal haemodialysis versus daytime haemodialysis using a mixed methods approach: study protocol for a randomised controlled trial. Trials 24, 522 (2023). https://doi.org/10.1186/s13063-023-07565-w
- Dam, M., Weijs, P. J., Van Ittersum, F. J., Hoekstra, T., Douma, C. E., & Van Jaarsveld, B. C. (2023). Nocturnal Hemodialysis Leads to Improvement in Physical Performance in Comparison with Conventional Hemodialysis. Nutrients, 15(1), 168. https://doi.org/10.3390/nu15010168
- Dumaine, C.S., Ravani, P., Parmar, M.K. et al. In-center nocturnal hemodialysis improves health-related quality of life for patients with end-stage renal disease. J Nephrol 35, 245–253 (2022). https://doi.org/10.1007/s40620-021-01066-2